segunda-feira, 24 de setembro de 2012

 
 
 
“consiste em transportar para uma coisa o nome da outra ... uma espécie de comparação à qual falta a locução comparativa”.
O ESTADIO DO ESPELHO
                                     O estádio do espelho como formador da função do eu.

"A função do estádio do espelho revela-se para nós, por conseguinte, como um caso particular da função da IMAGO que é estabelecer uma relação do organismo com sua realidade – ou como se costuma dizer, do Innenwelt com o Umwelt." (Lacan, 1998, p.100) Essa passagem mostra a relação necessária do corpo com as imagens, os fantasmas, os sonhos, o simbólico. Para Lacan, é nessa relação que se forma o sujeito, assertiva essa que se opõe à concepção de um sujeito absoluto, totalmente livre e senhor de suas escolhas. Na concepção lacaniana, o estádio do espelho se opõe a qualquer filosofia do cogito, em outras palavras, a qualquer filosofia corrobore essa absolutização do sujeito:
Correlativamente, a formação do eu simboliza-se oniricamente por um campo fortificado, ou mesmo um estádio, que distribui da arena interna até sua muralha, até seu cinturão de escombros e pântanos, dois campos de luta opostos em que o sujeito se enrosca na busca do altivo e longínquo castelo interior, cuja forma (às vezes justaposta no mesmo cenário) simboliza o ISSO de maneira surpreendente. (Lacan, 1998, p.100) Uma experiência de descoberta similar também é tematizada em
O espelho, de Machado de Assis. Aqui o personagem em frente ao espelho não é uma criança, mas de um jovem que, em meio à solidão, descobre a duplicidade do eu, sua subordinação frente a valores externos. O conto mostra um personagem narrando um fato que supera a experiência empírica cotidiana. Ao olha-se no espelho, Jacobina vê uma imagem distorcida que só retorna a sua integralidade quando seu uniforme de alferes é vestido. Jacobina é um dos cinco cavalheiros que participam de um debate sobre "questões de alta transcendência", de "cousas metafísicas" e dos "problemas do universo" (Assis, 1996, p.21). Inicialmente, o personagem está ouvindo seus companheiros, calado, pensativo e sonolento. Após ser requerido para dar uma opinião sobre o assunto em pauta (sobre a natureza da alma), afirma: "Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas" (Assis, 1996, p.21). Conforme diz o narrador, anteriormente, Jacobina não discutia nunca, pois acreditava que "a discussão era forma proibida do instinto batalhador" (Assis, 1996, p.21).

E acrescenta ainda: "não admito réplica" (Assis, 1996, p.23).

Assim exemplifica sua tese o personagem:
Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira. Shyloc, por exemplo. A alma exterior dele eram os ducados; perdê-los equivalia morrer. (Assis, 1996, p.23) Jacobina conta que, ao conseguir o posto de alferes da guarda nacional (hoje equivalente ao posto de segundo-tenente), angariou como conseqüência grande admiração por parte dos familiares e conhecidos. Sua tia viúva, Marcolina, como forma de agrado, convida-o para o sítio onde ela mora. "Se lhes disser que o entusiasmo de tia Marcolina chegou a ponto de mandar pôr no meu quarto um grande espelho..." (Assis, 1996, p.21)

 Um dia a tia recebeu a noticia de que a filha estava doente. Ela parte e Jacobina fica só. Além da ausência de Marcolina, outro fato acontece: todos os escravos fogem do sitio.

 Começa assim o transtorno de Jacobina: "Nunca os dias foram mais compridos, nunca o sol abrasou a terra com uma obstinação mais cansativa. As horas batiam de século a século, no velho relógio da sala, cuja pêndula, tic-tac, tic-tac, feria-me a alma interior, como um piparote contínuo da eternidade." (Assis, 1996, p.30) É nesse sentimento de solidão que o personagem vive a experiência do espelho. No fim de oito dias, ele vê, em lugar do reflexo de seu corpo, uma imagem com linhas difusas e cintilantes. Ao vestir a farda de alferes "... o vidro reproduziu então a figura integral." (Assis, 1996, p.34) Pode-se perceber, assim, que a situação de solidão possibilitou a revelação no evento do espelho.
 
A solidão também é importante para as teses do francês René Descartes nas Meditações. Assim começa o filósofo:
Há algum tempo eu me apercebi de que, desde meus primeiros anos, recebera muitas falsas opiniões como verdadeiras, e de que aquilo que depois eu fundei em princípios tão mal assegurados não poderia ser senão muito duvidoso e incerto; de modo que me era necessário tentar seriamente, uma vez em minha vida desfazer-me de todas opiniões a que até então dera crédito, e começar tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse estabelecer algo de firme e de constante nas ciências. (Descartes, 1996, p.257)

Descartes realiza, além da tentativa de descoberta de princípios seguros, uma experiência de análise de si. O filósofo diz, posteriormente à citação acima, que não se pode negar a presença física, que aqueles que assim pensam são loucos. "E como poderia negar que estas mãos e este corpo sejam meus?" (Descartes, 1996, p.258) Acrescenta, porém, que, na condição de homem, tem o costume de dormir e representar em sonhos a realidade: "Quantas vezes ocorreu-me sonhar, durante a noite, que estava neste lugar, que estava vestido, que estava junto ao fogo, embora estivesse inteiramente nu dentro de meu leito?" (Descartes, 1996, p.259) O filósofo conjuntura a possibilidade de ilusão, de que Deus tenha desejado que ele se engane. Por isso, conclui momentaneamente que não há nada que não possa duvidar. Surge, dessa forma, o método: "Considerar-me-ei a mim mesmo absolutamente desprovido de mãos, de olhos, de carne, de sangue, desprovido de quaisquer sentidos, mas dotado da falsa crença de ter todas essas coisas." (Descartes, 1996, p.262) O corpo, dessa forma, vela-se como parte de uma estratégia para alcançar uma verdade, para a descoberta do ser e do princípio que o fundamenta. O que Descartes considerava inicialmente como loucura é nesse  momento, como parte da primeira meditação, um instrumento fundamental do cogito.
.A meditação é um processo introspectivo e imaginativo pelo qual o filósofo mergulha no desafio da verdade. O eu, a escrita de si e solidão são partes necessárias desse ato. Meditar aqui significa voltar a si mesmo para encontrar o todo e as partes deste; encontrar, principalmente, o fundamento que sustenta toda a realidade. Na segunda meditação, conclui: "Mas há algum, não sei qual, enganador, mui poderoso e mui ardiloso que emprega toda sua indústria em enganar-me sempre. Não há, pois, dúvida que sou, se ele sempre me engana." (Descartes, 1996, p.266) Para depois finalmente chegar à consideração posteriormente discutida: "...esta proposição, eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas as vezes que a enuncio ou que a concebo em meu espírito." (Descartes, 1996, p.266)
Em Descartes, não há um espelho, mas há um olhar sobre si. O filósofo descreve seu método passo a passo e chega a conclusões. A "loucura" cartesiana mostra-se produtora de saber, da verdade sobre o ser: nossa existência não pode ser contestada.
 
Diferentemente do filósofo francês, Jacobina não buscou de forma premeditada, a produção de uma tese sobre a existência. As descobertas do personagem são parte de um processo de
re-velação, de uma situação que mistura o acaso, a instabilidade emocional e a epifania epistemológica. A imagem ora difusa ora integral do espelho funciona como um elemento que desperta a consciência à própria realidade: àquela de um sujeito dependente da função e da aprovação social. Inserido dentro da dinâmica da aceitação alheia, Jacobina passa a compreender o significado do olhar do outro, a importância deste na construção de seu modo de ser. Para que isso acontecesse, no entanto, foi preciso um afastamento da alteridade modeladora. Foi apenas nesse momento de recolhimento forçado que o personagem submeteu seu pensamento à  experiência reflexiva. Atitude essa contraria o até então automatismo da aparência e da ação modelada.

Embora não tenha sido um método ao modo das meditações cartesianas, a experiência de Jacobina vincula-se à estratégia do filósofo francês. Em ambos os casos, aparece uma novidade metodológica, isto é, a desconstrução dos caminhos usuais da produção do conhecimento. Em Descartes, a hipótese da ilusão e do deus-enganador; em Machado, o deslocamento da experiência cotidiana na imagem distorcida. Em segundo lugar, vale destacar que as duas teses sobre a existência originam-se na
interpretação de si, de um entendimento sobre a própria subjetividade. A partir daí, elabora-se uma generalização que fundamenta os atos e pensamentos das pessoas, assim como a própria legitimidade do existir. Essas semelhanças entre o texto cartesiano e machadiano demonstram o valor do desafio às convenções do saber e das condições de sua elaboração. Os dois textos, embora com finalidades diferentes, apresentam a importância do deslocamento e da provocação aos paradigmas silenciosamente aceitos. Provocação essa que confere à imaginação e a "loucura" um papel fundamental na construção do conhecimento.

Se por um lado o texto de Machado se aproxima da estratégia cartesiana das
Meditações pela elaboração do saber no olhar sobre si e no desafio às convenções metodológicas, por outro, se afasta, ao trazer à baila um sujeito cujo fundamento capital não é a somente a razão. A base do pensamento de Descartes está no cogito, embora seu texto inicie com a proposição da ilusão do real. A "loucura" cartesiana não é um estado psicológico, mas uma etapa da construção do edifício do "eu penso, logo existo". Trata-se de uma travessia necessária ao desenvolvimento da tese. Em Machado, o sujeito produtor do saber parece sofrer um certo abalo emocional originado pela situação de solidão. No conto, o próprio indivíduo sofre com seu distúrbio na visão de sua imagem partida. Chega-se aqui a uma aproximação com Lacan. A imagem do espelho manifesta um indivíduo partido, isto é, alguém dependente da alteridade e subjugado pelas artimanhas da psique. A experiência de Jacobina desconstrói a soberania da razão no exercício da produção epistemológica, da mesma forma a idéia de um sujeito absoluto.
Esse conto exemplifica uma estratégia peculiar de Machado: a proposição provocativa de saberes através do desafio da subjetividade. O personagem-provocador machadiano surge como um indivíduo que causa estranhamento, alguém cujos modos de ser e o conteúdo discursivo revelam um sujeito que não se contenta com as pressões das convenções. Sua palavra manifesta o novo, um elemento que convoca personagens e leitores a uma nova percepção. Em tal palavra, não existe o compromisso com a aceitação, com o(s) paradigma(s); o valor propositivo se alimenta do jogo e da possibilidade da fala. Signos e conteúdos trazem a experiência de uma interioridade que pode ser ouvida porque o contexto narrativo assim o permite. Longe de ser uma instância julgadora, o outro funciona apenas como um interlocutor necessário para que o conteúdo apareça. Junto com o novo saber, esse indivíduo de ausente compromisso  epistemológico aparece em sua totalidade. Não se trata aqui de um afastamento indiferente entre sujeito e objeto como nas proposições racionalistas: não há um detentor soberano, tampouco uma verdade metodologicamente avalizada a fim de que se alcance a aprovação social. Em Machado, a verdade do sujeito brota da possibilidade de expressão e se concretiza na fluidez do livre pensamento de um personagem que nunca é majoritariamente racional.

A tradição filosófica é constantemente desafiada nos textos machadianos, mesmo que não haja referências explícitas. O literário aparece junto com o vigor do pensamento por meio de estratégias que possibilitam repensar o real e associar um certo discurso ou atitude a nomes importantes dos variados campos do saber. Fato esse que não significa a adoção de uma linha de pensamento único, nem mesmo a imposição e/ou aplicação de modelos na obra de Machado; em seus textos, o que prevalece é a flutuação, é a travessia que experimenta os modos de dizer e os conduzem a situações peculiares. É por esse motivo que o cotidiano adquire novas dimensões interpretativas que põem abaixo a passividade dos atos humanos vinculados à aceitação dos discursos naturalizados.
Tais afirmações auxiliam na compreensão de que a aparente loucura dos personagens funciona como uma estratégia semelhante àquela de Erasmo de Rotterdam no Elogio da loucura.  No século XVI, Erasmo faz uma sátira da sociedade medieval européia personificando a loucura e lhe conferindo uma voz reflexiva. Nesse discurso de reflexão e auto-elogio, essa presunçosa personagem diz fazer-se presente nas crianças, nos supersticiosos, nos religiosos e até nos sábios. Afirma que, por causa dela, o ser humano suporta as vicissitudes da vida e a alteridade, além de prolongar a vida: "Como haveria de definir-me, apresentar-me sob formas diversas, pintar-me, se estou em vossa presença e me contemplais com vossos próprios olhos? Sou eu mesma, como podeis ver, sou essa verdadeira dispensadora de felicidade que os latinos chamam de Stultitia e os gregos, Moria." (Rotterdam, p.19) E não se pode deixar de acrescentar que por causa da experiência insólita de Jacobina (dos "loucos" personagens machadianos), um desafio também é lançado: uma voz que provavelmente seria desconsiderada e interpretada pelo viés da jocosidade ou insensatez dialoga agora de forma significativa com o pensamento.
Por fim, mostrou-se neste trabalho que o conto acima mencionado dialoga com a questão da construção do saber e da subjetividade. Machado de Assis articula o vigor do conhecimento a uma perspicaz capacidade de reflexão sobre os movimentos humanos externos e internos. O humano aparece de forma provocadora aos usuais condicionamentos da razão e traz em seu discurso e atos o imprevisível e o impactante. No conto, existe um diálogo com o pensamento, fato esse que exemplifica uma ação constante nas narrativas machadianas. Embora não engendrado como um texto de filosofia, a obra em questão permite a indagação sobre a natureza humana e a relação desta com as conjunturas contraditórias do real.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
 
EM ESPECIAL.
 
http://www.filologia.org.br/machado_de_assis/A%20subjetividade%20e%20a%20tradi%C3%A7%C3%A3o%20filos%C3%B3fica%20em%20o%20espelho.pdf

ASSIS, Machado. O espelho. In:

Contos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. Coleção Leitura.

DESCARTES, René.

Meditações. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

FOUCAULT, Michel.

A história da loucura. Trad. José Teixeira Coelho Neto. 6ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1999.

FOUCAULT, Michel.

A hermenêutica do sujeito. Trad. Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

LACAN, Jacques. O estádio do espelho como formador da função do eu. In:

Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

ROTTERDAM, Erasmo de.

Elogio da loucura. Trad. Ciro Mioranza. São Paulo: Editora Escala, s.d. Coleção Grandes Obras do Pensamento Universal.

SECCHIN, Antônio Carlos et alii. Machado de Assis, uma revisão. Rio de Janeiro: In-Fólio, 1998.






 


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